<span class=”abre-texto”>Hoje, aqui do meu cantinho</span>, sentindo saudade de pessoas de grande importância na minha vida, fui seguindo o fio no meu condomínio mental. Percebi que tenho uma lista interna longa, fui resgatando uma a uma para partilhar aqui. De dentro para fora. De pessoas para costumes. De sensações para indignação.
Saudade. Palavra sonora do nosso idioma. Sintetiza um emaranhado de emoções, sensações, pensamentos e, às vezes, movimentos na busca de conexões perdidas no tempo. Saudade cimenta o sentir – palavra tão musical – estrutura a base do sentir. Coloca as percepções em perspectiva. Arruma, com pequenos solavancos, os equívocos. Dá tempo de entendimento daquilo que não foi dito, das pequenas frestas do viver junto.
A doçura que a ausência produz faz do reencontro uma mágica que se expande em coreografias coloridas. Há quem longe se faz presente em música, há quem longe se faz presente em poesia, há quem longe se faz presente na memória da pele.
Saudade dói. Instala conflito no pensamento, um embate quase inútil entre respeitar o tempo e invadir, com armas e bagagens, território precioso da vida do outro e exigir presença. Saudade incomoda, pois instala forte consciência da passagem do tempo, dos momentos que passaram e não foram aproveitados, se misturam à névoa do passado. Lembra o fim, lembra a morte. Saudade irrita, quando saná-la não está dentro do cone de controle, quando nada se pode fazer, quando há pedaço do caminho a ser percorrido pelo outro.
Saudade do que não se viveu, de lugares e momentos cuidadosamente fantasiados e descolados da realidade como o são os sonhos, que nosso cérebro traiçoeiro traz para a cena com tal riqueza de detalhes que as emoções, abduzidas pela competência, envolvem, arrebatam e derrotam o sonhador. Lugares, pessoas, sensações, momentos, aromas, sabores, música, cores. Uma sequência de gatilhos para nos carregar, tal pena que voa, para lá e para cá, alterar a melodia dos batimentos cardíacos, apertar a garganta, dar vontade de chorar.
E há saudades mais complexas. Sérias. De um mundo no qual não valia mentir, que a verdade era reconhecida como qualidade. De uma maneira geral, a verdade fazia parte do combo de autorrespeito, era vergonhoso ser apanhado na mentira, na falsidade, no desvio. Mesmo no mundo das negociatas e manipulações, a pessoa correta, direita, era respeitada pela lisura e afiançava a própria palavra com “fio do bigode ou da franja”.
Depois que vivi um bocado, percebi que na realidade não era bem assim tão direta a relação entre realidade e verdade. Conheci muitas pessoas que tinham dificuldade para lidar com a verdade e conheci outras que faziam da mentira, opção de vida e profissão. Destes não tenho nem um pouquinho de saudade.
Tenho saudade de um tempo, ou ideia nos quais o respeito à vida nem atraía tanto a atenção, pois era pilar resistente da humanidade – era percebido quando era violado e uma conexão empática coletiva acontecia mais volumosa que a curiosidade mórbida. Como a saudade muitas vezes entorpece os sentidos, pode ser que eu esteja lastimando algo que realmente não aconteceu. Mesmo assim não desisto.
Quero um mundo de encontros amorosos e respeitosos, onde aconteçam gestos verdadeiros de respeito e lealdade, que se possa reconhecer, valorizar, validar, colaborar para a construção e manutenção de ambientes seguros para a convivência entre seres. Quero um mundo onde seja um absurdo a violência, que as vozes escandalizadas se unam para não deixar acontecer a barbárie. Que façam tal ruído, com tamanha indignação – que as pessoas entorpecidas aqui e acolá irão acordar e sair da sedação moral, esta sim, mortal.