<span class=”abre-texto”>Todos os anos, em março</span>, quando começam a aparecer nos meios de comunicação as mensagens comemorativas do dia internacional da mulher, sou arrebatada por dois sentimentos fortes.
De um lado, a persistente esperança de que um dia não mais precisaremos de uma data para lembrar quem é e o quão precisa ser respeitada, valorizada, validada, incluída e, principalmente, vista cada uma das mulheres. Por outro lado, um desalento insidioso se instala no meu pensamento, acompanhado da sua companheira, a impotência, que pesa no peito e dificulta a respiração. Isto mesmo. Pensar nessas coisas dói. Muito.
Muitas vezes, me parece que demos muitos passos rumo ao mundo em que seres humanos serão seres humanos, sem qualquer discriminação. Contudo, sou forçada a perceber que retroagimos enquanto espécie, em alguns casos, à barbárie.
Sou mãe de duas mulheres corajosas, resolutas, independentes – em evolução, cada qual na sua jornada, enfrentando suas batalhas com garbo e elegância. Convivo com mulheres assim também. Tal convivência alimenta a minha esperança. Sou mãe de dois homens esplêndidos, generosos, resolutos, independentes – cada qual na sua jornada, também no enfrentamento das batalhas, sem destruir pessoas pelo caminho. Convivo com homens assim. Essa convivência alimenta a minha esperança.
Homens e mulheres com os quais trabalho, ou desfruto do prazer das partilhas simétricas, seguem escolhendo respeito, sintonia, conexão ou o que traduz um neologismo: “Oqueidade”.
Oqueidade é um conceito elaborado pelo psiquiatra Dr. Eric Berne, humanista na sua essência, que abrange uma sequência de decisões cognitivas e decisões oriundas da experiência subjetiva inconsciente relacionada à percepção de si e do outro. Cada um de nós é produto de camadas de experiência e de relacionamentos. Se, ao longo deste trânsito, na interação com cuidadores e pessoas de importância, a pessoa puder absorver e modelar comportamentos respeitosos abrangentes, à medida que evolui, poderá fortalecê-los a ponto de validar a própria e a existência dos demais seres humanos.
Parece poesia, mas não é. A prática violenta em relação às mulheres, de inúmeras raízes sociais, econômicas e culturais, também se origina de modelos. Tais modelos são transversais. Pois tal violência não se restringe a determinada camada social, econômica, cultural ou étnica – embora possa ser mais impulsionada por qualquer uma delas.
O jogo de poder que constrange, violenta, diminui, anula e, muitas vezes, mata uma mulher é aprendido, cada lance, cada estratégia, cada manipulação, cada movimento de controle, cada palavra agressiva, cada insinuação ofensiva, cada tapa, cada tiro, cada morte.
Penso que muito ainda há o que fazer; nestes últimos tempos, a retroação foi assustadora. Havia décadas que não escutava falas (vindas de homens e mulheres) tão medievais. Às vezes, tenho temor de ver Salem reeditada, quando mulheres sábias, cuidadoras e alegres foram condenadas e executadas como bruxas.
Hoje, as violências são categorizadas e nominadas. Comportamentos antigos batizados com nomes compostos, simples – em geral, em outro idioma. De novo, só o nome. São antigas práticas transvestidas e, para meu horror, transpostas para as redes, expandidas pelo anonimato, difundidas como discurso e aceitas pelo silêncio cúmplice de homens e mulheres. Sim! Há mulheres que compactuam com a violência propriamente dita e com a criação de novos violentos.
Investi tempo e vida no desenvolvimento de pessoas. Como irmã, mãe, gestora e agora mentora. Acreditando e plantando, com cuidado e amor, as sementes da convivência respeitosa e pacífica. Entre homens e mulheres, entre seres humanos habitantes deste nosso pálido ponto azul, a Terra. E ainda escuto que as pessoas não importam, que resultado é o objetivo a alcançar e que precisa acontecer sem mimimi – e que vocês, mulheres, insistem em nos fazer perder tempo com estas questões gasosas, os seres humanos.
Há um grito parado na minha garganta. Uno a minha voz àquelas que clamam e faço da minha, a voz das que foram silenciadas.