<span class=”abre-texto”>Um dia, minhas filhas, mulheres</span> pensantes e encantadoras, durante um almoço me perguntaram, um tanto inquisitivas, a razão pela qual não me viam reclamar. Os tempos eram pesados naquele domingo. As pessoas se altercavam por tudo e por nada, cada grupo arrogando a si a propriedade total da verdade absoluta.

Não consegui responder imediatamente, pois a pergunta me surpreendeu. No meu condomínio mental (que é como chamo meu diálogo interno), muitos debates vigorosos ocupavam a minha atenção. Minha agonia central era (e é) entender o que aconteceu com a criança, para que chegasse tão desajustada no futuro, e o que poderia acontecer para que adultos raivosos pudessem se desenvolver a ponto de conseguir cuidar de si e da comunidade.

Alertada por elas a não me calar quando houvesse uma chance de minha voz ser escutada, ou quando a violência não suportasse omissão, tenho refletido a respeito do que posso fazer.

Parece-me razoável que alguém que não resolveu suas próprias questões e necessidades ou as tem escondidas de si mesmo, dificilmente terá disponibilidade para cuidar do interesse coletivo.

Parece-me razoável que alguém que não resolveu suas próprias questões e necessidades ou as tem escondidas de si mesmo, dificilmente terá disponibilidade para cuidar do interesse coletivo. Pois tanto a percepção de si quanto a percepção do outro vai se organizando à medida em que a criança transita pelas suas diferentes fases de desenvolvimento. E a consciência coletiva, fundamental para a inclusão da comunidade no cone de atenção de cada pessoa, será modelada pouco a pouco no relacionamento da criança com seus cuidadores primários.

Quais serão as necessidades de uma criança que se atendidas podem apoiar a jornada de desenvolvimento, do nascimento à vida adulta, e constituir a base de um comportamento político pautado pela ética da simetria ou Oqueidade?

Segundo Aristóteles:

“Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda ela se forma com vistas a algum bem (o bem-comum) pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as comunidades visam a isso, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui todas as outras tem mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade política” (Pol., 1252a).

Segundo o olhar aristotélico, a política é uma ciência cujo propósito é a felicidade humana, segmentada em ética e política propriamente dita. A ocupação da ética é a felicidade individual da pessoa na comunidade-cidade (pólis), e a ocupação essencial da política é a felicidade coletiva na comunidade-cidade.

Uma pessoa, para ter disponibilidade ética e política, […] precisa ter suas nutrições emocional e de estrutura atendidas, e uma autoestima fortalecida a ponto de poder não se prender apenas aos próprios desejos.

Do meu ponto de vista, uma pessoa, para ter disponibilidade ética e política, e se ocupar da felicidade individual ou coletiva, precisa ter suas nutrições emocional e de estrutura atendidas, e uma autoestima fortalecida a ponto de poder não se prender apenas aos próprios desejos.

Transitando brevemente por algumas estações do desenvolvimento, olho para simples tarefas que podem integrar o pequeno ser em desenvolvimento.

Ainda no ambiente intrauterino, o bebezinho captura impressões viscerais da mãe e do contexto em que está a mulher. Mensagens, pensamentos e emoções dão ao pequenino ser a segurança para se desenvolver plenamente, sentir-se bem-vindo, e nascer. Ainda no ambiente intrauterino, aspectos relacionados a confiar ou não se instalam na memória do bebezinho.

Logo após o nascimento, e até por volta dos seis meses, a criança necessita ser vista, acolhida, tocada, receber cuidados consistentes. O repertório do “ser cuidado” começa a se instalar, recursos que poderão no futuro compor o “cuidar do outro”.

Daqui, até os dezoito meses, a criança explora o mundo ao seu redor. Curiosa, com os olhos arregalados, quer experimentar. Cabe aos cuidadores oferecer segurança e permissão para a exploração de modo a fortalecer a confiança na ação de aprender.  É OK aprender e experimentar coisas novas. O mundo é extraordinário!

Deste ponto até os três anos, a criança desenvolve a capacidade de pensar por si mesma, de entender a conexão entre causa e efeito. Já está habilitada a dialogar sobre coisas, fatos e pessoas — claro, na sua gramática ainda em construção. Os cuidadores são os interlocutores privilegiados, que podem celebrar a nova capacidade de raciocínio, e fornecer  tempo e espaço para a criança organizar o pensamento.

Dos três aos seis anos, a criança começa estabelecer a identidade individual, aprende habilidades e descobre o papel e as relações de poder com os outros. Aos seus cuidadores cabem algumas atividades, dentre outras, permitir que a criança expresse seus sentimentos e conecte sentimentos e pensamentos. Também é momento de dar informações e corrigir desinformação. Responder às perguntas, compartilhar com a criança os impactos e responsabilidades das ações. Tais ações, dialogadas, gentis, sem violência, significam aportes fundamentais na construção da consciência coletiva deste ser em desenvolvimento.

Poderíamos seguir esta reflexão idade a idade, mas escolho parar no fim da infância, até o momento que círculo de influência da criança se expande através da matematização e alfabetização.

E o mais bonito é que caso não tenha recebido a assistência adequada, o adulto pode “crescer de novo”, cuidando de si, antes de intervir no coletivo, ou ainda se preparando para intervir construtivamente na pólis.

Se, até aqui, o ser em desenvolvimento recebe atenção sintonizada de figuras de importância, é provável que na idade adulta tenha recursos para atuar na pólis, ética e politicamente. E o mais bonito é que caso não tenha recebido a assistência adequada, o adulto pode “crescer de novo”, cuidando de si, antes de intervir no coletivo, ou ainda se preparando para intervir construtivamente na pólis.

Imagino que talvez não possamos fazer movimentos grandes, amplos, universais. Minha ambição é miúda. Se não pudermos educar crianças para uma atuação política OKOK, quem sabe possamos educar crianças para pensar e atuar construtivamente em seus respectivos ambientes?