<span class=”abre-texto”>Hoje, quero convidar você para uma jornada</span> na direção de uma criança que certamente espera por este encontro. Dentro de nós, às vezes paciente e outras vezes inquieta, nossa criança interior espera.

A criança que um dia fomos, com suas experiências, vivências, relacionamentos, emoções, pensamentos, continua a viver dentro de nosso condomínio mental. Cada uma dessas dimensões, importantes singularmente e fundamentais, em conjunto, são tão imprescindíveis à sobrevivência que a memória as registra com zelo.

Há uma criança compartilhando a vida com cada adulto. Muitas vezes, ela assiste adultos desesperados tentando organizar suas próprias vidas. Consigo até imaginar o olhinho arregalado da criança interior de cada um deles.

De outra perspectiva, o maravilhamento da criança, seu encantamento pela vida, olhar deslumbrado para cores, sabores, sons e sensações, sua sensibilidade às pessoas ao redor, também persistem na memória, prontos para iluminar a vida do adulto.

Em algum momento, por muitas e variadas razões, essa criança é encarcerada, esquecida – e o adulto segue sua vida automaticamente. Ainda que não conscientemente percebida, essa criança continua a interferir na vida de seu adulto carcereiro.

As necessidades não atendidas, as dores não acolhidas, o medo, a raiva, o desespero dessa criança silenciada, quando ignorados, surgem nos comportamentos, emergem como gêiseres emocionais, nos mais diferentes momentos da vida do adulto.

Os desejos reprimidos e o maravilhamento não experimentado também impulsionam comportamentos intempestivos, precipitados, ou impulsivos dos adultos. A criança clama por atenção. Mesmo quando seu chamado não é escutado, os efeitos são experimentados pelo adulto.

Uma parada, para entender.

Ao longo de sua experiência de vida, a criança tem necessidades que, quando atendidas, impactam sua qualidade de vida. O não atendimento das necessidades, aos poucos, produzem fissuras no equipamento de sobrevivência de tal criança.

Muitas vezes, para suportar a dor, os adultos escolhem ignorar a presença da criança interior. E seguem a vida, automática e freneticamente, vão em frente – utilizam substitutos para o provimento destas necessidades ignoradas. É frequente que fissuras emocionais sejam cobertas com coisas, controles, poderes, violências, riquezas, comidas, sexo, e outros paliativos. Mas isso nada disso funciona.

Ao ignorar a dor, o adulto perde simultaneamente o olhar maravilhado e a possibilidade de perceber os outros adultos integralmente. Veja só: se ignoro a minha criança, perco a capacidade de enxergar a criança dos outros adultos. Os relacionamentos perdem a poesia, o encanto, a nutrição do amor inequívoco que tanto as crianças precisam, e tanto as crianças são habilitadas a fornecer. A vida fica fria.

E lá fica a criança, no sótão mental do adulto, esperando.

Ela espera ser vista, reconhecida, valorizada, lembrada, acolhida, abraçada, bem-vinda, como toda criança. Ela também espera ver a fisionomia do adulto se iluminar ao vê-la! “Você é bem-vinda, meu amor transbordante é seu, eu amo você bem assim como você é!”.

A criança espera ser ouvida, falar do que precisa, do que sente, dos medos e das tristezas, das inquietudes e das raivas, das agonias e das angústias. E espera não se sentir desamparada, abandonada, sozinha. E ela está lá, trancada no sótão do adulto, ainda esperando.

Penso que talvez não possamos fazer muito por tantos adultos que, impulsionados por uma criança interior ferida, seguem ferindo. Que talvez não possamos fazer muito por muitos. Mas precisamos, urgentemente, começar a fazer algo, começar agora. É o jeito de, no futuro, termos adultos com a criança interior viva, presente, colorindo as possibilidades da experiência da vida.

Começar significa parar e escutar. Abrir a porta deste sótão e dizer: cheguei! Quero conhecer você. Quero cuidar de você. Iremos juntos cuidar de cada fissura, de cada dor. Juntos redescobriremos o maravilhamento e a força para dar conta dos desafios. Estes continuarão a existir! Não desaparecerão! Contudo, teremos mais força e confiança para seguir.

Um ganho relevante desta redescoberta é o olhar de profundo respeito e acolhimento que este adulto poderá descortinar ao conviver com as crianças da sua vida. Tanto as crianças pequeninas, quanto as crianças dentro de corpos adultos.

Que as portas dos sótãos mentais se abram, o mundo está muito precisado do olhar das crianças!

Ilustração: aquarela sobre o desenho de André Masson em Les chavaliers (1927).