<span class=”abre-texto”>Quando as coisas estão seguindo seu fluxo normal</span> é difícil perceber o que de fato importa. O que de verdade importa demanda atenção focada, pois são coisas pequeninas, que escapam do brilho frio da comercialização. Quase como se fosse um atributo de sobrevivência, nós os viventes tendemos aos padrões que se repetem. A repetição empresta ao desafio do viver uma previsibilidade que tangencia a segurança. Tangencia, passa perto, mas de verdade a não previsibilidade é companhia fixa desta aventura humana.
À nossa volta se revezam múltiplos vetores não controláveis, fora das nossas mãos e, muitas vezes, fora da nossa capacidade de absorver, interpretar e internalizar. O que significa, superficialmente, que deveríamos minimamente desconfiar das nossas certezas.
Minha ideia é que esta desconfiança não seja direcionada às pessoas, mas aos eventos. Que a desconfiança devidamente treinada pudesse fazer o papel de um alarme que nos fizesse acordar momentaneamente, sair do automático e fazer o contato possível com a realidade objetiva.
Sei que parece ser simples quando dito ou escrito e sei da complicação que é quando experimentado deliberadamente. Pois tem sido minha prática há um bocado de tempo.
Brigar com as fantasias, as esperanças e com os sonhos faz parte do “sair do automático”. O grande desafio é abdicar temporariamente destes vitalizadores da vida, sem perdê-los definitivamente. Sem estes três pilares, o desânimo e a desesperança podem fazer morada no nosso diálogo interior. E não é nada bom quando isto acontece. O corredor escuro da jornada sem fantasias, esperanças e sonhos – paradoxalmente – apoiam a letargia do automatismo.
Gosto de pensar em uma solução na qual possamos adestrar nosso cérebro para transitar livremente entre estes três pilares e a realidade objetiva, mantendo a consciência de plantão. Ou, que possamos manter nossa atenção de modo a distinguir, sem grande sofrimento, o que é do que não é.
Já seria especial, pois a atenção, por si só, é um apoio ao poder pessoal. Pode evitar que nos transformemos em marionetes da vontade e do controle de outras pessoas no polo passivo dos jogos de poder.
Analisando os jogos de poder nos diferentes cenários (casa, trabalho, política e outros), podemos encontrar o humano manipulado imerso no seu mundo interno, sem atenção para o aqui-agora. Este ser utilizado como massa de manobra não foi treinado para pensar e para prestar a atenção. Não lhe foi concedida a oportunidade para pensar diferente das pautas automáticas que adornaram o seu desenvolvimento.
Os caminhos paralelos ao da conformidade foram apresentados como risco, inferno, comportamento antissocial, descomprometimento, indisciplina, heresia e outros tantos rótulos, em cada uma das dimensões da vida humana.
Sou dominada por uma tristeza enorme – nos momentos em que consigo fugir do automático – quando olho em volta e assisto pessoas depositando sua crença e sua ação em ficções habilmente elaboradas para controlar.
Este método (pois é um método), invade famílias, empresas, relacionamentos. O que de verdade tem valor, como a vida humana por exemplo, se perde no automatismo coordenado.
De repente, algo que na minha infância era considerado uma grande falta, a mentira, adere ao método de controle, e cegas, as pessoas repetem e repetem e repetem enredos elaborados com requintes para abduzir a alma do arauto.
Sinto-me pequena e, confesso, muitas vezes com um desejo danado de aderir ao modo automático. Anestesiando minhas agonias até o ponto de não sentir. Não consegui ainda. E sigo fazendo movimentos decididos para não automatizar meu viver. Claro que meus pensamentos, vez por outra, se embolam com um desejo de gritar alto. Berrar publicamente, tal qual uma Cassandra (a de Tróia), pedindo para que a marcha do automático (ao som de Pink Floyd “The Wall”) se interrompa para dar atenção verdadeira a si ou pelo menos às crianças.
Vou escapando aos poucos, colecionando momentos autênticos, nos quais posso ser autenticamente quem sou, falar o que autenticamente penso, convivendo sem a imposição das coreografias vendidas como ideais. Faço contratos com pessoas (poucas) à minha volta para suportar o tranco juntas. Pois sei do custo do enxergar.
Minha proposta para mim mesma é fazer o enfrentamento com gentileza. Consigo quase o tempo todo. Naqueles que fraquejo tenho tido a sorte de enxergar a mão amiga que ajuda a levantar. Dádiva do não automatismo.