Domingo sossegado, poucas pessoas, quase nenhum ruído, céu meio cinza meio azul, temperatura amena. Da minha varanda espio uma rua quase deserta. Aqui e acolá, um cachorro lastima, chora de saudade dos tutores. É feriado.

Uma palavra, renascimento, zanza nos meus pensamentos. Ela está associada à celebração cristã da Páscoa. É uma palavra repetida, sugerida, filosofada – muitos pequenos vídeos sugerem, em diferentes línguas: hora de renascer, de começar de novo, de construir um novo eu.

São propostas complexas, pois de difícil (impossível!) execução. Posso entender, compreender e até dar novos significados às minhas experiências de vida, mas elas continuarão por lá, pilares do meu eu, nutrindo meus pensamentos, impulsionando minhas ações e dando cor aos meus sentimentos.

Começo muito cedo a armazenar, sem um projeto organizado, retalhos destes eventos na minha memória. A proposta de renascer me arremessa em cenários de ficção, alguns familiares, pois já fantasiei algumas histórias de recomeços… Lembrando de alguns, ao evocá-los, conecto a minha pequena eu, que rascunhava algumas possibilidades, muitas das quais incluíam outros planetas.

Fui uma menina (ou ainda sou) muito imaginativa. E em alguns momentos da minha vida queria muito fugir para outra dimensão. Livros e anjos me salvaram.

Portanto, ao dizer que é impossível renascer, não o faço sem ter refletido, imaginado, fantasiado muito a respeito.

Alternativamente, experimentei a ação contida em outras palavras: reparar, atualizar, qualificar, perdoar, entender… todas elas contemplam pequenos renascimentos, revigorantes, que vitalizam a manutenção da direção e sustentam a esperança para não desistir.

Muitos momentos da vida parecem vidro quebrado, milhares de estilhaços que lembram dor, despedidas, ruína da lealdade, morte da confiança… Ao trazê-los para memória, para organizar o caos, empresto dos japoneses a arte do restauro de porcelanas quebradas, o kintsugi. Os artistas remontam a peça original, não com o propósito de esconder as cicatrizes, mas para as valorizar, utilizando ouro no processo.

No nosso kintsugi humano, cada conjunto de cacos examinados, remontados, fazem sentido – contam uma história. Restaurá-los permite entender personagens e contextos. A distância favorecida pelo tempo que passou, pode gerar sabedoria que levará ao alívio, ao aprendizado. Muitos personagens poderão ser resgatados a partir do restauro, outros, após conveniente despedida, vão para o acervo deste museu extraordinário que é nossa memória, devidamente etiquetados com um “aprendi, não quero mais”.

Este trabalho delicado de encontrar os pedaços e conectá-los, mesmo considerando que nunca acharemos todos, nos dá a oportunidade de olhar para a história com olhar atualizado por todas as experiências de lá até aqui. Muitas vezes me dizem: Ah, como gostaria de ter este meu jeito de agir quando… Outra coisa que ainda não podemos fazer… viajar de volta ao passado.

É hora de olhar para este eu do passado com a serenidade e compaixão que fazemos com os nossos mais bem amados pequeninos. Fizemos o possível com o que sabíamos e com os instrumentos que tínhamos.

Primeiro a receber perdão: o nosso eu do passado. E um perdão carinhoso, com colo e tudo. Sob pena da culpa nos tirar o ânimo para qualificar nossas estratégias como bem-sucedidas, afinal de contas, se estamos juntando os cacos, estamos vivos e acordados – de olhos bem abertos!

Perdoar não significa esquecer. São aprendizados preciosos: coisas que não mais faremos, pessoas nas quais não mais confiaremos, pensamentos dos quais me protegerei, decisões pensadas – que agora posso tomar. Todavia, não esquecer não pode ser um arrastar de rancor, que como bolas de ferro, atrasam nossos passos.

Sei que ainda passamos tempos tenebrosos, violências, infâmias, injustiças, absurdos – sofrimentos de dimensões inimagináveis. Para me manter na saúde emocional, preciso entender, restaurar, escolher com lucidez a cada passo.

O mais fundamental dos passos para que eu me mantenha neste propósito, de semear esperança, é restaurar meus eus, que trazem da jornada cicatrizes de terrenos abrasivos. A sustentação se dá quando, ao ir à busca da cura, encontramos as referências de amor incondicional. Pessoas que ao longo da estrada tiveram tempo e atenção para ouvir, validar, valorizar, acarinhar, estimular.

Este é o ouro do nosso kintsugi humano. Anjos do passado, anjos do presente – que lá estão, sem nada pedir em troca, estendem a mão, olham no olho – enxergam, percebem, amam. Cada gesto, um movimento rumo à restauração. Cada pequeno território fortalecido, possibilidades despertam. Olhando assim, renascem aquelas apagadas pelo desamor. Cada gesto, cada cicatriz abrandada, força para a militância da esperança.