<span class=”abre-texto”>É impressionante o quanto a necessidade de controlar</span> os mínimos detalhes da existência tira da pessoa a oportunidade extraordinária de estabelecer laços cooperativos. O medo do controlador o faz ver o mundo como uma grande ameaça. Tal como um Dom Quixote, louco e desvairado, briga com moinhos de vento e afasta as pessoas de si.
Por medo de parecer fraco, o controlador aponta as fraquezas dos outros. Por medo de parecer menos competente, tem um olhar aguçado para os erros dos outros. Por medo de parecer menos inteligente, consome tempo enorme com coisas pequenas, pelo pequeno prazer de parecer “mais”. Um dos recursos utilizados por ele, para dominar as pessoas e fazer a realidade se dobrar aos seus caprichos, é a mentira.
Aqui, preciso fazer um breve “entre parênteses”. Minha tendência central é entender, acolher a dor, e, se for o caso, ajudar a pessoa reencontrar o seu caminho. Contudo, isso não significa que entendo sempre, acolho sempre, e ajudo sempre. Há casos para os quais declaro a minha incompetência. Nesses, quando possível, busco fortalecer a mim e as pessoas com as quais convivo, para resistir aos jogos de poder.
As pessoas, de diferentes maneiras, buscam adaptar a realidade ao seu quadro de referência. Algumas vezes, de maneira não consciente, assumem papeis em sofisticadas tramas, as quais nós, os analistas transacionais, estudamos sob o nome de Jogos Psicológicos.
Jogando, as pessoas confirmam sua percepção sobre si, sobre os outros, e sobre o mundo; extorquem afeto, quando não o tem em abundante fluxo; resolvem seus temores com a realidade intrassubjetiva e objetiva; lidam com o tempo interno e o tempo externo – dentre outras profundas e antigas questões.
Os seres humanos precisam ser amados de um jeito que lhes permita sobreviver, e, depois, viver integralmente. Negligência ou violência os afastam da estrada mais clara de sobrevivência. Não aprendendo a gramática da sobrevivência, jogarão para seguir adiante. Um dia escrevei mais sobre isto. Quase me perdi do meu objetivo.
Jogos de Poder
Como escrevi lá no início, há pessoas que deliberadamente exercem o poder sobre outras pessoas. São aqueles que jogam os Jogos de Poder. As razões pelas quais chegam a esse comportamento são múltiplas. São muitos os porquês a serem respondidos.
Percebo, predominantemente, nos olhares dos controladores que conheço mais de perto, o medo. Mas já vi frieza e indiferença, também bem de perto. Também identifico frieza e indiferença no olhar daqueles operadores do Jogo de Poder público.
Na década de oitenta, um psiquiatra radical, um dos precursores da Análise Transacional, Dr. Claude Steiner, explorou esse tema. Passaram mais de quarenta anos, e seu texto é atual, pujante, assustador. Possível de ser cotejado, item a item, com os acontecimentos de agora. O que mobilizava Steiner a aprofundar o estudo quanto ao jogo de poder era a crença que há um outro lado do poder onde é possível conviver com cooperação ou com humanidade.
Os Jogos de Poder servem à competição e ao controle, e afetam relacionamentos em todos os ambientes. O controlador quer obter vantagens para si, e não hesita em criar tantas confusões quanto forem necessárias para “vencer”. Os jogos de poder podem ser grosseiros, violentos, explícitos. Mas também podem ser sutis, tão perigosos tanto os demais, mais silenciosos e, quando abduzem o controlado, esse quase não se percebe aprisionado, claustrofóbico no mundo do outro.
Os Jogos de Poder sutis se alimentam da obediência (muitas vezes confundida com colaboração). E os obedientes saberão justificar com eficácia as reações daqueles que os controlam. Os obedientes não são treinados para perceber e contestar ações desagradáveis, desonestas e violentas dos poderosos. Foram criados no ambiente “eu mando, você obedece”, e seguem obedecendo aos que mandam, sem sequer buscar provas factuais do que são obrigados a tolerar.
Os obedientes, quando olham em torno e percebem conformismo e aceitação dos outros, acreditam que suas objeções não têm razão de ser. Ao obedecer a um controlador poderoso, o deslocamento de foco acontece de maneira quase integral. Os sentimentos, as necessidades, os medos do obediente desaparecem, sob a força da premência de atender aos desígnios do poderoso. Aqueles que protestam são rotulados como inimigos perigosos. Se aparece um laivo de dúvida, o obediente passa a duvidar de si mesmo.
O controlador
Aquele que manobra os outros através do Jogo de Poder o faz ao se aproveitar das fraquezas dos outros, os quais despreza e desconsidera. As fraquezas são detectas com uma eficiência assustadora.
O controlador exerce o poder através da intimidação, ameaças, manipulação, violência – utilizando, concomitantemente, a mentira como estratégia de comunicação deliberada do jogo.
A mentira recebe definições e conceituações de diferentes áreas do conhecimento humano. Desde distorcer a realidade a partir de uma pequena fração, até criar uma interpretação mais abrangente. Ela pode nascer de atos de preservação pessoal ou social. Pode ser uma estratégia de sobrevivência tão ensaiada que passa a fazer parte do “ser” da pessoa.
Contudo, nas manobras do Jogo de Poder, a mentira tem a intenção de estender o domínio da própria vontade sobre as outras pessoas, negando o direito, ou a vontade, ou a necessidades dessas pessoas. A mentira serve de condutor da maldade e da injustiça.
Além de explorar a obediência, o controlador se utiliza da mentira para explorar a credulidade e o medo que as pessoas podem ter do confronto. Aquele que se utiliza do Jogo de Poder como forma de controle, e da mentira como gramática, sente-se superior aos outros, logo, as outras pessoas não têm o direito de saber a verdade.
O mentiroso mina a capacidade do obediente ou do crédulo de lidar com as demandas da própria vida. Isolados da realidade, e com suas percepções e emoções desqualificadas, terão pensamentos e ações desorganizados. O controlador, por meio das mentiras, destrói a vida fora da submissão, da obediência. E faz crer que o sucesso ou o bem-viver só virão “se” suas ordens sutis ou declaradas forem seguidas. Logo, caso nada dê certo, a culpa é daquele que não foi submisso o suficiente.
A mentira consciente do controlador depende da confiança e da falta de informação. Muitas vezes mascarada de “honestidade”, é tão difundida que a pessoa verdadeiramente honesta é considerada uma anomalia.
Os Jogos de Poder corroem os fundamentos de uma convivência ética. A manipulação ao invés da negociação. Objetivos e metas individuais ao invés de propostas e ações coletivas. Indiferença às necessidades, distanciamento no lugar de contato, cooperação, diálogo.
São poucos aqueles que controlam através dos Jogos de Poder, mas constituem uma minoria poderosa, e sua eficácia deriva do sangue-frio e do planejamento sistemático. Nada fica ao ocaso dos acontecimentos.
Saída
A antítese para os Jogos de Poder e para a competição são a cooperação e a educação emocional. Somos muitos, e muito podemos. Mas esse é um tema que merece protagonismo. Preciso deixar um espaço para Immanuel Kant.
Para ele, um indivíduo não deve mentir em hipótese alguma, pois a mentira pode induzir o ouvinte a praticar determinada ação que não corresponde a sua vontade, e sim a vontade daquele que proferiu a sentença não verdadeira. Isso priva o ouvinte de fazer uso de sua total liberdade de ação. Isto é, viola o conceito de direito como um todo, ao violar o direito do ouvinte de saber a verdade.